domingo, 7 de junho de 2009

Uma viagem sem fim

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Em “Reflexão sobre uma viagem sem fim”, o escritor amazonense Milton Hatoum relata o seu encontro com Felix Delatour, um europeu que morava em um sobrado em Manaus e dava aulas de francês. “Numa primeira mirada a floresta é uma linha escura, não se consegue assimilar muita coisa. Mas no meio da escuridão há um mundo em movimento, milhões de seres expostos à luz e à sombra”, diz o professor a Hatoum, segundo o diálogo presente no conto.
Assim que cheguei à capital do Amazonas, sozinha, sabia que iria passar por situações inusitadas, mas não contava que a forma como me sentiria em relação a elas é que seria o mais importante. Quando adentrei a mata e percorri o rio numa canoa era como se eu estivesse em um santuário, sentindo a vida pulsar, latente, nas árvores, no murmúrio do vento nas folhas, no canto dos pássaros, na beleza dos peixes. A minha volta outro universo existia, desencadeando dentro de mim inúmeras sensações até então desconhecidas. Eu sentia, mas não compreendia. Apenas agora, um mês depois que retornei, consigo escrever sobre algumas coisas que vivi. A impressão que tenho é que as lembranças aqui publicadas não se apagarão com o tempo.
Quando eu parti não deixei para trás apenas a paisagem amazônica, mas um punhado de pessoas, histórias, sonhos e inquietações. Um pedaço da vida. O verde da mata, o branco da nuvem, o rosa do boto, o cinza da chuva e o púrpura do entardecer emolduravam rostos anônimos, pequenas cintilações de almas no ignoto. Lembro do Seu Maurício, um ribeirinho de 63 anos que trabalhou a vida todo como seringueiro e já no limite das forças viu toda a sua plantação de couve ser inundada pela chuva. “Antes dava 700 por semana, agora nem sete centavos”, me contou. Apesar da tragédia, ele não tinha o semblante triste; nutria uma profunda fé na vida e mantinha um estranho brilho nos olhos.
Também me recordo de um homem com uma pose arrogante e soberba, mas que soltou altas gargalhadas quando entrou comigo numa brincadeira de roda-roda com as crianças indígenas, as segurando pelos braços e girando os seus corpinhos para o alto.
Cada pessoa viaja por um motivo diferente. Conheço verdadeiros mochileiros que cruzam o país ao melhor estilo beatnik, pegando carona com caminhoneiros e dividindo a comida com estranhos pelo simples prazer de conhecer realidades distintas e de se aventurar pelo desconhecido. É tentador estar em um lugar e não dar satisfação a ninguém, ser apenas mais um rosto na multidão e vislumbrar outras formas de existir. Apesar dessa sede de culturas e de vivências, sempre acreditei que a maioria dos que se arriscam pela estrada o fazem porque estão à cata de algo maior, talvez em busca de si mesmos, num eterno ir e vir. É engraçado como passamos o tempo todo em busca de um significado e, no fim das contas, só o encontramos uns nos outros. Quando cruzamos com pessoas tão diferentes – como jovens professores que largariam tudo para lecionar em um lugar esquecido pelo País, ribeirinhos que vivem no limite da pobreza e que possuem uma sabedoria que não se aprende em nenhuma universidade do mundo, gays que ousam assumir a sua sexualidade em uma sociedade repleta de preconceitos, guias que conhecem a floresta como a palma de suas mãos, mãe e filha que passam apenas dois meses por ano juntas e uma empresária linda, inteligente e solitária – e conseguimos enxergar que podemos ser de cores, raças, credos e regiões distintas, mas no fim das contas somos todos iguais. Vivemos em um mundo de estranhos apenas esperando que alguém nos estenda a mão e nos mostre que não estamos sozinhos nessa incrível jornada que é viver.



2 comentários:

carina gomes disse...

Que lindo, Michele!
Nossa, passei pelo seu blog ontem e gostei demais, mas já estava tarde e não consegui ler o seu texto com a tranquilidade q li agora. Tão bonito, tão sensível.
Aliás, desde ontem, algumas palavras suas me trouxeram a reflexão. Hj fiquei com estas: "ser mais um rosto na multidão e vislumbrar outras formas de existir".
Este relato dessa sua experiência é rico demais, imagino q o que vc ganhou te troxe mudanças verdadeiramente significativas.
Bjão!

daniel disse...

adoro, Milton Hatoum, de coração!