quarta-feira, 19 de março de 2008

“Aquilombaram a poesia em cadernos”

Edição comemorativa de Cadernos Negros marca três décadas de negras palavras*

Michele Prado

No ano de 1978, um grupo de pessoas vinculadas à escrita freqüentava o Centro de Cultura e Arte Negra [Cecan], no bairro do Bixiga, em São Paulo. Dentre elas, a dupla formada pelo poeta Luiz Silva [pseudônimo Cuti] e pelo advogado Hugo Ferreira propôs a criação de uma antologia literária com composições em versos. No mesmo ano, oito autores uniam-se para publicar os Cadernos Negros.

Passados 30 anos da publicação das 52 páginas no tamanho brochura [10x14,5cm] do primeiro Caderno, o Quilombhoje – grupo de escritores paulistanos que tem como objetivo discutir e aprofundar a experiência afro-brasileira na literatura – lança uma edição histórica que reúne contos e poemas de 35 autores publicados durante o período. Cadernos Negros – Três Décadas traz ilustrações das capas anteriores, índice com o nome dos autores que participaram desde o primeiro exemplar, além de fotos que marcaram os eventos de lançamentos e uma coletânea constituída por análises da série.

Quilombhoje foi fundado, no final da década de 70, por Cuti, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues, dentre outros. A sigla do grupo é um neologismo que inclui a retomada histórica do quilombo com a palavra “bojo”. Ou seja, é uma literatura que está no bojo de um movimento maior, o Movimento Negro Nacional.

Atualmente, com a aplicação da Lei 10.639 de 2003, que obriga o ensino da história e da cultura do negro no Brasil, surgiu à tona uma polêmica discussão sobre a chamada Literatura Negra ou Afro-Brasileira. O que é Literatura Negra? A questão étnica é fator primordial na classificação dos autores? Como trabalhar e difundir essa Literatura? Segundo a atriz e escritora Cristiane Sobral, a Literatura Negra representa o negro de uma maneira diferente de como ele é apresentado no mercado. “Deixa de ser ‘um negro’ e passa a ser ‘o negro’”, explica.

Para compreender o que Cristiane afirma, basta lançar um olhar mais atento à representação do negro na mídia, constantemente carregada de preconceitos e estereótipos. Em um país multirracial como o Brasil, a cor da pele ainda influi na maneira como a sociedade estigmatiza as pessoas.

De acordo com Esmeralda Ribeiro, jornalista, escritora e atual coordenadora do Quilombhoje – ao lado de Márcio Barbosa –, “a mulher ainda é vista como empregada doméstica, apesar do alto cargo que possa ter”. Esmeralda conta que, durante um lançamento, foi interpelada com a seguinte questão: “Você copia de onde suas poesias?”. A pergunta, um tanto quanto grosseira, foi desferida por uma senhora que não acreditava que uma negra fosse capaz de dominar com maestria a linguagem literária. “É um desafio trabalhar a mulher e o ser negro. Ainda somos vistas como inferiores”, conta.

Se tomarmos por regra que os textos da Literatura Negra são escritos produzidos pelos negros sobre os próprios negros, desde o século XVIII então despontam escritores que retrataram sua vivência em versos. Como exemplo, Domingos Caldas Barbosa, Luís Gama, Cruz e Souza, Lino Guedes, Auta de Souza, Solano Trindade, dentre outros. Portanto, o termo “Literatura Negra” foi criado para dar nome há algo que já existia. “Sempre existiu. Apenas damos um olhar mais contemporâneo”, afirma Esmeralda.

Desde 1983, a organização e editoração dos Cadernos estão a cargo do Quilombhoje. Isso tem permitido que autores de todo país lancem seus escritos pela editora que leva o mesmo nome. A despeito da ampla divulgação nos meios alternativos, acadêmicos e militantes, a publicação ainda passa por dificuldades para bancar sua produção anual. Semelhante a um processo cooperativo, o grupo arca com parte dos recursos, e a outra parte é dividida pelos autores participantes.

A venda dos livros é realizada principalmente no lançamento de cada volume. Este filão, que não é oferecido pelo mercado editorial, já abriu portas até para a divulgação da produção brasileira no exterior. Foi publicada uma versão em inglês dos Cadernos Negros pela Africa World Press, nos Estados Unidos, em comemoração aos 30 anos de existência da série.

A literatura propicia a formação da identidade e da opinião do leitor. Neste caso, torna-se uma forma de resistência, um centro de transformação social. Partindo deste ponto, não restam dúvidas quanto à importância dos Cadernos Negros não só para a literatura, mas para a história brasileira. “Estamos libertando a palavra do pelourinho”, versa a poesia de Cuti. Que assim seja e continue a ser.



Cadernos Negros – Três Décadas
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Editora Quilombhoje Publicações
336 pgs.
Gratuito
Para adquirir, solicite o exemplar pelo site http://www.quilombhoje.com.br/. Em virtude da distribuição limitada, o Quilombhoje dará preferência para escolas e participantes do Seminário Cadernos Negros – Três Décadas.

*Publicado na Revista Paradoxo

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