quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Flores da liberdade

As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura revela segredos de nossa história

Michele Prado

Foto: divulgação
Em 1998, enquanto caminhava pelo jardim histórico da Fundação Casa de Rui Barbosa, Eduardo Silva notou a presença de três pés de camélia. Imediatamente lembrou-se de que havia lido certa vez em um documento, do próprio Rui Barbosa, algo sobre aquele tipo de flor. Como pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico [CNPq], Silva decidiu resgatar uma espécie de ligação secreta entre o Quilombo do Leblon, os negros, a Confederação Abolicionista e a princesa Isabel. Como símbolo de uma luta subversiva, uma flor rara que necessita de cuidados específicos tal como a liberdade no final do século XIX, período de forte embate contra o fim da escravidão.

Após quatro anos de pesquisa, Silva publicou o livro As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura. Em entrevista exclusiva à Paradoxo, o autor conta detalhes desse trabalho que traz à tona um período da história em que os próprios negros lutaram pela liberdade.

Revista Paradoxo – Em seu livro você estabelece uma diferença entre “quilombo rompimento” e “quilombo abolicionista”. Explique a discrepância entre esses dois conceitos.
Eduardo Silva –
É tudo muito simples. Como o próprio nome indica, no caso do “quilombo rompimento” ou “quilombo tradicional”, o indivíduo rompe com a sociedade que o oprime, foge para o mato, para um lugar bem longe e inacessível, e tenta fundar uma outra comunidade ou sociedade mais agradável para se viver. Esse é o caso do famoso Quilombo dos Palmares. No caso do “quilombo abolicionista”, o objetivo não é romper com a sociedade escravista e se isolar no mato, mas transformar a própria sociedade escravista por dentro. Revolucionar a velha sociedade escravista e transformá-la em outra coisa. Esse foi o caso do Quilombo do Leblon, no Rio de janeiro, do Quilombo do Jabaquara, em São Paulo, e de tantos outros espalhados pelo Brasil.

RP – Como as camélias se tornaram símbolo do movimento abolicionista?
ES – Não podemos saber exatamente como, porque tudo isso era uma questão guardada no maior segredo. A camélia era o símbolo de um movimento subterrâneo, underground, subversivo mesmo. Proteger escravos fugidos, dar abrigo a quilombolas, era contra as leis vigentes e dava processo, cadeia, multa, tudo de ruim. Só a multa podia chegar a um conto de réis. Por isso, a turma abolicionista fazia o maior segredo. Mas não podemos esquecer que a flor é tradicional no Japão, de onde certamente já chegou com fama de árvore sagrada, a primeira a florir depois do longo e terrível inverno, aquela que anuncia o início da primavera. Não podemos esquecer também que “A dama das camélias”, de Alexandre Dumas Filho, era uma das peças de teatro de maior sucesso do Rio de Janeiro da época.

RP – A flor então passou a ser uma forma de resistência?
ES –
Claro, todo movimento político, todo partido, precisa de um símbolo que o represente. O genial dos fugitivos do Leblon foi a capacidade de fazer as alianças necessárias com o mundo político da época, juntando os maiores abolicionistas e chegando até a princesa Isabel. Eu procuro mostrar esse processo no livro [As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura], mas você pode imaginar a própria “Princesa Imperial Regente” aparecer em público usando uma camélia produzida no Quilombo do Leblon? O mundo político veio abaixo, e não era para menos.

RP – Qual a participação do Quilombo do Leblon no processo da abolição da escravatura?
ES
  Você consegue pensar em um quilombo especializado na produção de camélias? Era isso que dava força simbólica às camélias, que de flor romântica e inocente, virou casaca e passou a significar um movimento altamente subversivo, a luta pela liberdade imediata e incondicional. “Liberdade já”, eles gritavam. A turma do Leblon era da pesada.

RP – Esse quilombo contava com a proteção da princesa Isabel? Por quê?
ES –
Sem qualquer sombra de dúvida. Contava com a proteção da princesa Isabel e, podemos dizer, com a discreta simpatia do Imperador D. Pedro II. Descobrimos que a princesa recebia em segredo braçadas e mais braçadas de camélias. E ela sabia muito bem de onde vinham aquelas flores e o que elas significavam. A princesa também protegia escravos fugidos em seu palácio. Sobre isso, como procuro mostrar, não paira qualquer dúvida. Eu mostro, inclusive, os depoimentos de André Rebouças e José Carlos do Patrocínio, os dois grandes intelectuais negros do período.

RP  O que motivou sua pesquisa sobre as camélias?
ES –
Quem leu  o livro conhece bem essa história. Um belo dia, atravessando o Jardim histórico da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, acabei notando, pela primeira vez,  a presença de três pés de camélia estrategicamente plantados. A partir desse pequeno detalhe, fui descobrindo aos poucos a trama toda que envolvia Rui Barbosa, a princesa e muitos outros. Mas o importante não é só a questão simbólica das camélias. O quilombo do Leblon nos mostra que a abolição foi uma conquista muito mais rica, complexa e interessante do que estávamos habituados a pensar, e contou com a participação ativa do próprio escravo.

RP – Após As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura ser publicado, o movimento negro passou a utilizar as camélias como símbolo de igualdade racial, inclusive existe o Prêmio Camélia da Liberdade. Como você se sente ao ver que seu trabalho resgatou parte importante da nossa história?
ES –
Eu vou contar um segredo. Logo que o livro saiu, senti que houve uma repercussão muito interessante, particularmente entre colegas e militantes do movimento negro. Alguns estranharam logo de cara, mas depois a ficha foi caindo aos poucos. Outros foram mais rápidos e logo perceberam a importância do símbolo revelado pela pesquisa e, muito delicadamente, começaram a me sondar procurando saber se haveria algum problema de direitos autorais, ou mesmo se seria possível o uso das camélias em campanhas pela igualdade racial. Claro que não havia problema algum. Aliás, a flor não é minha nem de ninguém. Eu sou apenas um modesto pesquisador, um batalhador na pedreira dos arquivos, que acabou, por pura sorte, descobrindo uma ponta dessa história fantástica. Posso ter sido o veículo, mas não inventei nada. A simbologia das camélias refere-se à deusa Clio, pertencente à História do Brasil, à história do povo brasileiro e, mais particularmente, à história do povo negro.



As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura
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por Eduardo Silva
Compahia das Letras
144 págs.
$36,50


Entrevista publicada na Revista Paradoxo.

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