quinta-feira, 27 de março de 2008

À minha mãe

Entardecia. Estavámos sentadas defronte à mesa de jantar, lembrando histórias da família enquanto a vó terminava de tomar café. Não sei bem como, mas o assunto enveredou para meu primeiro dia na escola. "Eu não chorei no primeiro dia de aula, pelo contrário, eu chorava pra ir pra escola!", afirmei orgulhosa. Foi quando você me olhou fundo e disse cabisbaixa: "Até hoje eu sinto remorso por aquele dia, sabia?". Espantada, eu questionei o por quê. "Eu deveria ter ido com você até lá dentro, não ter ficado no portão, te olhando entrar lá sozinha".
Eu dei risada e disse que aquilo era bobagem. Oras, eu estava feliz por finalmente ir à escola! Se eu estivesse triste ou chorando, como as outras crianças, aí sim você teria motivos para se sentir mal, mas não foi esse o caso. Você baixou os olhos e riu um riso tímido, triste. Os olhos marejaram. Senti que de nada adiantariam minhas tentativas para apaziguar seu ser pelo ocorrido.
Talvez seja inútil tentar entender os misteriosos desígnos da alma humana. Você, em seu amor incondicional de mãe, em seu instinto protetor e incondicional de mãe, tem carregado por anos a fio um peso por acreditar que me deixou sozinha em um momento crucial de minha existência. Talvez em seu intímo paire a sensação de que é sua obrigação caminhar ao meu lado, de mãos dadas, pela vida afora. E bastou apenas um momento, em que soltou a minha mão e apenas me observou dar passos curtos à frente, para que se atormentasse pelo ato impensado.
Sabe, nem sempre para estar ao lado do outro precisamos estar de mãos dadas. Às vezes, os sentimentos mais puros e ternos, mais simples e verdadeiros, pairam exatamente na distância dos corpos. Os laços de amor presentes entre duas almas afins são muito maiores do que a vida, a geografia, o teto de casa ou até mesmo a morte. O amor é a única coisa que verdadeiramente nos une.
É chegada a hora em que iremos soltar as mãos. Sei bem que o mundo é um moinho; já triturou um bocado dos meus sonhos mesquinhos e vai continuar assim. Mas é preciso seguir em frente e tal qual a menininha que adentrou o portão da escola sozinha, temerosa e feliz, darei passos curtos, pequenos, porém ousados. E você estará observando, pronta para me socorrer caso eu precise.
Deixar as pessoas livres para projetarem seu próprio destino também é uma prova de amor e isso eu sei que você tem de sobra. Nós temos de sobra.
Iremos soltar as mãos, mas continuaremos unidas.

3 comentários:

[tabita] disse...

que engraçado, também estava pensando em escrever para a minha mãe. essa mulher com quem eu brigo tanto, e que eu amo tanto.

bonita a brincadeira com a música do cartola. agora vou ficar com ela na cabeça. 'ainda é cedo, amor...'

precisamos soltar as mãos, mas continuaremos unidas. vou dizer isso para a minha mãe.

beeeijo.

Michele Prado disse...

ah tabis,a música do cartola não sai da minha cabeça faz tempo. rs

às vezes as entrelinhas dizem muito mais do que queremos.

beijito.

Caio disse...

lindo, michele!

tem uma psicoterapia chamada "constelações familiares" que diz muito sobre soltar as mãos e seguir o próprio destino.

um beijo.